Assovio

Marketizaram os recursos do meu coração

Bem mascadinho

Bunitinho

De um jeitinho lustradinho

Eu fiquei tão inho

Tão pequeni-ni-nho

Mufino

Dum quebranto de canto de olho

Todavia

No fim da curva de toda essa diminuteza

Eu me senti todinho

E de pé no repentino

Colhi as flores derramadas no peito

E me pus a caminhar

Transe-unte

Untado de transe

Errante

Um vento de vivo

O Invisível pode nos matar

O teu reflexo

Cabe em minha íris dilatada

Mas tu não és teu reflexo em mim

A minha miopia

Não é o limite da tua existência


O que não cabe em meus olhos

Transborda quando te sinto dentro de mim

Eu sempre choro

Meu ego desfeito


Tudo o que não vejo

Não é o nada

Tudo o que não vejo

É tudo o que não vejo diante de mim

Como a oração

Como o beijo

Como o mar mergulhado de cabeça


Ai, Vida

Como é intenso te amar

Além da primeira vista

De corpo inteiro

É inevitável

Não me despedaçar


Num piscar

A ignorância poderá nos matar

No raso dos próprios olhos

Tudo ou nada

Paixão

É sempre muita

Se pouca

Não é paixão

É diminutivo


Amor

A não ser no nada

Está em tudo

No pouco

No muito


Vida

É radical

Ou é tudo

Ou não é nada

É tudo ou nada


Ame

Uma pessoa

Um outro animal

Uma árvore

Ou um grão de areia


Um quinto de micrograma

De amor

Te basta

Para viver

Em toneladas

Mulher além de homem?

É mais forte ser mulher

Que ser um homem?


O amor é mais forte na mulher

Que num homem?


O amor é melhor parido na mulher

Que num homem?


Se sou filho de mulher

Como posso ser só homem?


Como encontro a mulher

Que habita neste homem?


Somente erijo a mulher

Na derrota deste homem?


Ou será que

Sou mulher

Além de homem?

(R)EXISTIR

Existir

É resistir

Impor-se a cada pulsar

Declarar-se a si

Aos outros

Todos os dias

A todos

Existir

É resistir

Afirmar-se

Reafirmar-se no dia seguinte

Repetir-se sobremaneira

Da sua própria maneira

Peculiar maneira

Diferente

Diversa

Existir

É re-existir

Deve-se existir

Duas vezes

Dizer o próprio nome

Duas vezes

A primeira para que possam ouvir

A segunda para se fundamentar

É como se existir uma vez

Não bastasse!

Deve-se resistir

Repetidamente

A anatomia invejosa dos meus olhos

O lamento de um indivíduo que se sente apartado

Hoje eu tentei

Eu juro que tentei

Dar uma volta inteira nos meus olhos

Talvez haja algo

Dentro da minha cabeça

Que o mundo lá fora nem desconfia

Talvez uma enxaqueca

Querendo sair

Algo que a anatomia dos meus próprios olhos

Mantém em segredo até de mim

Seriam minhas sinapses

Um raio poderoso?

Seriam meus medos

Uma tempestade imprevisível de relâmpagos?

A saudade

Me ilumina ou me escurece por dentro?

Seria meu amor

Um forte lampejo?

De que cor?

O que eu fiz mundo afora

Seria um acidente aqui dentro?

Há algum tesouro no meu avesso

Que me torne precioso?

Estou fadado a admirar o mundo

Sem nunca me ver por dentro?

Talvez a composição de minhas lágrimas

Carregue mundo afora

Todos os segredos escondidos dentro de mim

Que meus olhos não me deixam ver

Seria minha grandeza assim…

Tão microscópica?

A solidão não é o fim da expansão.

Ultimamente, tem sido mais difícil me por em poema que em prosa. Na prosa, há períodos e períodos que se seguem ofegantes com breves pausas. Parece até que se joga assunto fora na abundância do parágrafo, uma conversa fiada. Prosa eu tenho até na companhia feliz e falante de amigos, em qualquer sacada, com a língua solta.

Já o poema tem surgido da minha solidão enquanto poeta, em que nada se desperdiça, pois nenhuma palavra vem de graça. É solitário e custoso. Uma exposição dolorosa. Vem num contexto no qual se trava a língua, a boca, as narinas, os buracos das excreções e até mesmo os poros da minha pele. Tudo tenta fechar-se para dentro de mim. Todavia, não mais que num milésimo de um instante, cai um raio e minhas mãos se espasmam a escrever.

Talvez o poema nasça em mim num momento em que hesito me comunicar e, por isso, tento fechar todos meus acessos. Mas a Alma, numa insistência poética revolucionária, arruma um jeito solitário de se por e de nascer. É poente de certa forma, mas nascente de outra.

O poema me soa, às vezes, como minha própria derrota, resultante da minha vã tentativa de manter a Alma presa no meu corpo. Mas até na solidão a Alma se sente na importância de se anunciar. É expansiva como o Universo. E se expande em versos. Paralelos que são, dão um jeito misterioso de se encontrarem lá no além, na sutileza de um momento de conexão que revela a Grande Essência do poema, da minha vida. Uni-versos.

Não é que na prosa eu não exista enquanto poeta. Não, não. A Poesia não tira descanso nem quando durmo. É que no poema há um silêncio necessário na passagem de um verso para o outro. Quem nunca se viu imerso num verso, ficou ali perplexo e perdeu a sequência da estrofe? Não há pressa. É um ritmo diferente de vida pra mim, talvez inverso, ou multiverso, em que a morte também se faz presente. Tem verso que mata a gente e, para prosseguir, há que ressuscitar, processo que tem se dado no silêncio, no íntimo, na dor. Enfim… acho mesmo que verso não se lê a torto e a direito. É preciso de fôlego, oxigênio. Declama-se, um por um.

Quem sabe o poema, na verdade, não esteja sendo minha própria vitória sobre mim mesmo. Um ato de coragem que me cai como um raio, num instante. Uma forma de me expandir mesmo na solidão para não tornar minha tristeza em vão. Uma revolução.

Baltimore

Eis que de uma sexta pra sábado, madrugada sem balada na cabeça, cansado da semana que misturou alegria com tristeza, eu ponho pra tocar no celular, no sofá da sala, as melhores da Nina Simone, mulher que amo há uns anos.

Posso dizer que, antes de fazer isso, se essa semana fosse uma bebida num copo, não saberia dizer se estaria mais doce ou mais amarga. Enfim, não era pra acontecer nada de mais hoje, nada extraordinário, fora do comum.

Mas, como disse, eu pus pra tocar no aleatório músicas da Nina Simone. Eu pensei, no início do ano, que 2019 não ia me render descobertas no mínimo legais. Eu ando entristecido pela ilegalidade de vários atos um tanto amargos pro gostinho de um Estado Democrático de Direito. Lá no início do ano de 2019, eu tava avassalado por mais uma derrota da democracia na última eleição presidencial. Bolsonaro no poder etc. Uma avalanche de pancadas no estômago e uma sensação de derrota da humanidade inteira.

Daí que começou a tocar no meu celular “Baltimore” da Nina Simone, que eu não conhecia até então. Simplesmente, nos meus 30 anos de idade, começou a tocar a melhor música dela pra mim. Tipo, eu acabei de descobrir, em outubro de 2019, um ano após aquele clima tenso de eleições do ano passado, a melhor música da Nina pra mim.

Foda. A Arte sempre salva. Mas somente quando oportunizada de ser experimentada, quando respeitada pela memória de um povo, quando permitido e incentivado o acesso por governantes. A censura é verdadeiramente um ato de ingratidão de quem a pratica. Ingratidão com as oportunidades que poderiam ser vivenciadas. E quem poderia ser grato à Arte, infelizmente pode pagar pelo pecado praticado por quem supostamente estaria lhe representando. É a injustiça. Paga-se mesmo sem dolo, sem culpa. A Arte atravessa o tempo, atravessa a gente. Qualquer gente. Toda gente. Por tamanha travessia nesse mundo todo aqui, carrega consigo sentimentos, memórias, conhecimentos, experiências de muitos e muitos séculos. Ela sopra na gente essências da humanidade que muitas pessoas de má-fé supõem ser mais prudente mantê-las em segredo, digo, censurar a Arte.

“Baltimore” me soa um reggae gostoso que fala que as cidades estão morrendo e eles não sabem porquê. Fala de fuga da cidade, um fugere urbem, um êxodo urbano. A maioria vulnerável da população brasileira ainda não viu a terra prometida em nossa Constituição brasileira. Por exemplo, é muito triste saber que no dia 22 de setembro desse ano um rapaz gay foi espancado quase até a morte no dia do próprio aniversário por um grupo de pessoas desnaturadas do que é bom, que o cercou covardemente na saída de uma festa. Será que estamos morrendo de amor ou de rancor? Será que existe gente morta com o coração ainda batendo por aí?

Que medo. Tenho medo de “mortos-vivos”. Melhor dizendo, tenho medo de vivos-mortos. Morto vivo é quem morreu, mas continua vivo, quem continua com o coração batendo através dos nossos corações. Tipo a Marielle, que morreu, que foi assassinada, mas continua viva no coração de muitas pessoas, de muitas mulheres injustamente marginalizadas. Já o vivo morto é aquele que continua andando por aí, batendo com força no coração, batendo no peito de quem não deveria bater, mas que apesar de tanto vigor, tá morto por dentro, com rancor, com medo. Que tristeza.

Que alegria, porém, tá sendo sentir “Baltimore” da Nina Simone no repeat pela primeira vez na vida. A Arte sempre surpreende. O curso da vida talvez seja feito de sensações interessantes. Por isso é importante permitir a si mesmo viver a Arte. Mas essencial mesmo é permitir que toda a gente viva a Arte. O Estado deve dar liberdade à Arte, porque se assim não for, a Arte vai transgredir, vai subverter, vai incomodar. E talvez o intuito da Arte, se tiver um, nem seja incomodar a gente. Talvez nós que fiquemos incomodados.

Enfim, é difícil falar sobre Arte. Acho até que não tenho jeito pra isso. Eu prefiro senti-la. Ouvir o que diz. Apreciar a Nina cantar “Baltimore”. Num sábado quase de manhã, sob o sol em Libra, regida por Vênus, vivendo essa experiência extraordinária, meio doce, meio amarga.

A sutileza do Espírito

Se somos o quanto ganhamos,

Por que nunca temos o que somos?

Porque a essência é como o sussurro da palavra amor dos lábios até os ouvidos.

Uma onda eletromagnética

Caminhante na velocidade da luz,

Incabível em apenas uma dimensão,

Fora do alcance de qualquer mão.

Somente o coração é seu destino,

Bem no fundo.

Somente o coração a acessa.

Pois o coração não se bate por coisas vis,

De inferiores dimensões.

É das grandezas que sabiamente retira o ritmo de seu próprio compasso.

Nunca teremos aquilo que somos.

Porque ter é muito pesado.

E para voar, apenas precisamos ser.